quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Conto-te uma história – Parte I

Nem todas as histórias começam numa terra distante, mas todas passam por sítios tão remotos que só podemos imaginá-los. Conto-te isto como se estivéssemos perto da lareira, como os avós fazem aos netos.
Certo dia, disseste-me que não sonhas. Toda a gente sonha. Acho que só te esqueceste de como o fazer. Anda, segue as minhas palavras e tenta sonhar.
Era uma vez, algures nos arredores de Lisboa, num outro tempo, um menino que morava com o pai numa quinta. Era um lugar pobre, onde só havia ovelhas, uma vaca escanzelada, duas galinhas e um cão muito velho. O cão chamava-se Tiracolo porque foi encontrado abandonado perto duma estrada quando era muito novinho e estava ferido nas duas patas dianteiras, pelo que só puderam transportá-lo num saco que o pai do menino usava a tiracolo, onde guardava o almoço diário. O nome ficou. Nessa altura, as ovelhas abundavam e um cão seria sempre útil para afastar os lobos e para dar algum alento a um pastor solitário com um filho tão pequeno. A família ficou completa e o cão, inteligente e fiel, veio trazer um resquício de alegria a uma casa soturna, depois da morte, por doença, da mãe do menino.
Aparentemente, o menino era igual a todos os outros mas as histórias feitas de normalidade não ocupam lugar nas bibliotecas e no coração dos poetas. O menino, que era extraordinário, conseguia sentir a alegria e a tristeza de todos os seres que o rodeavam. Não parece ser um grande poder, mas ele não se limitava a escutar os animais, ele conseguia fazê-los sentir-se melhor. Encerrava nele próprio a tristeza que mais ninguém queria sentir. Foi assim que o nosso Tiracolo conseguiu sobreviver às feridas que tinha nas patas quando foi encontrado. O dono anterior só queria usá-lo para caçar coelhos e, desde muito cedo, batia-lhe para habituá-lo à inclemência da vida que o esperava. Um dia, bateu-lhe de mais e abandonou-o. O menino, que na altura não teria mais de três anos de idade, percebeu que um animal em sofrimento estava perto do lugar onde o pai apascentava as ovelhas e correu para salvá-lo. O menino abraçou o animal ferido e reservou para ele mesmo as dores das injúrias físicas. Foi uma questão de tempo até o Tiracolo ficar apto a correr atrás dos animais da quinta, agora impacientes.
Viveram plenos com a natureza, às vezes cruel e imprevisível, todos juntos, até que um dia um homem demasiado educado e atencioso passou perto da modesta casa onde moravam. Era alto, mais ou menos robusto, e ostentava uma barriga que não ocultava os gostos gastronómicos requintados desta misteriosa personagem. Alegou ser um vendedor ambulante que, com a sua caravana, percorria todos os países que conseguisse. Tinha um sotaque estranho, como se tivesse nascido num qualquer país de leste ou como se falasse todas as línguas do mundo e já se tivesse esquecido de onde viera. Nunca disse um nome, mas era culto e conhecia segredos. Inspirava respeito mas era afável. Pediu, com cordialidade, ao pai do menino que o deixasse passar a noite na quinta e que desse de beber aos cavalos. A generosidade daqueles que têm pouco é desconcertante e o pai do menino não tinha nada, só um filho e alguns animais. Ofereceu a casa ao homem, partilhou a comida que tinha e não pediu nada em troca.
A casa só tinha uma divisão, que era modestamente separada por móveis velhos e vagamente comidos por larvas de insectos. Nessa noite, o menino dormiu com o pai e o homem ficou instalado no sofá. Poderia ter ficado na caravana, mas o dono da casa insistiu com o inesperado visitante para que este tivesse mais algum conforto do que era habitual.
Não se ouviu um único ruído. Durante a noite, com gestos leves como uma neblina, o homem tirou o menino, agora adormecido, da cama do pai, meteu-o dentro dum saco de lona, encafuou-o junto das tralhas que tinha na caravana e partiu.
Para trás, ficaram um rasto volúvel de rodas de madeira, memórias e as lágrimas do pai. Também o Tiracolo tinha desaparecido.
Na manhã seguinte, mais fria e insuportável, o menino acordou amarrado dentro dum saco escuro e fétido. Chorou mas pouco se ouviu. Às vezes, quando a dor é demasiado forte, não se consegue chorar. As crianças sabem-no.
Sentiu umas mãos gigantescas a abrirem o saco, a puxá-lo para fora e a agarrá-lo como se estivessem a preparar uma galinha para a refeição. Viu um grupo de homens grandes, enormes, com roupas feitas de peles de animais, mal barbeados e nauseabundos. O que o agarrava tinha uma cicatriz na metade esquerda da cara, o que condizia com a ausência do olho correspondente. Falavam uma língua complexa, só com consoantes, que o menino nunca ouvira. Havia algumas mulheres naquele sítio, obesas e sem a maior parte dos dentes. Gostavam de se sentar ao colo dos homens que mais alto gritavam.
O menino passou pelas mãos de vários homens que o olhavam com um misto de escárnio e orgulho, como se ele fosse um troféu que merecesse estar numa prateleira esquecida. Quantos mais homens lhe tocavam, mais tristeza o menino sentia e mais gargalhadas se ouviam naquele lugar.
Prenderam-no com uma corrente a um canto daquilo que parecia ser um bar ou uma taberna, mas sem regras e com toda a gente a comunicar com agressões físicas e olhares incisivos.
Passaram alguns dias até que alguém atirou um pedaço de pão ao menino. Foi a única refeição nessa semana. À medida que o tempo foi passando, os homens mostravam-se mais comunicativos. Davam restos das refeições ao menino e mantinham-no vivo, acorrentado e rodeado pelos seus próprios dejectos.
Passou um mês. Passaram vários meses. Passou demasiado tempo. O menino recordava a vida na quinta do pai como uma memória distante. Naquele lugar, rodeado por aqueles seres, só sentia tristeza. Sem conseguir controlar-se, fraco, sujo, foi absorvendo as mágoas e o passado tenebroso de cada um dos homens que se aproximavam dele. O menino, agora com cerca de dezasseis anos, quase um homem, era um adorno daquele lugar. Tirava a dor dos que estavam por perto e ficava amargurado, sozinho e esquecido.
Mas, para além de dor, os homens passavam-lhe memórias. O nosso jovem herói aprendeu línguas estranhas, construiu histórias, conheceu pessoas que nunca viu, tudo através daqueles homens improváveis. Ele parecia frágil e magro mas agarrava-se à esperança de voltar a ver o pai e de regressar à quinta.
Num fim de tarde estival, daqueles que aquecem as almas mais frias, aconteceu algo que ninguém poderia imaginar naquele lugar desprezado. O mesmo homem alto, robusto e cruel, trouxe mais um saco de lona. De lá de dentro, sabe-se lá vinda de onde, saiu uma menina, talvez um pouco mais velha do que o rapaz. Ela tinha os olhos verdes, como um mar profundo, e uma tristeza proporcional à beleza. Pela primeira vez, o menino sentiu-se equilibrado. Aquela pessoa, frágil e magoada, conseguia compensar, só com a presença, tudo o que ele tinha passado. Ele voltara a ser o mesmo menino. A memória da quinta do pai ficou mais viva e a esperança de regressar estava mais forte. Acorrentaram-na ao lado dele. Ela não levantava a cabeça, não olhava para ele, não sorria. Chorava, mantinha-se distante. (continua)

1 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Dormiu no sofá?

3:18 da manhã  

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