terça-feira, março 25, 2014

Quero errar contigo

Não há medidas certas para além daquelas que convencionamos. Na natureza, tudo tem a medida certa, desde que escolhamos não medir. Se o tempo que me resta fosse contabilizado e me dissessem que teria um mês para concluir a minha história, ia para uma zona inabitada por humanos, onde ainda não houvesse medidas para nada. Assim, um dia podia ser um ano e um mês uma vida. Podia prescindir de usar roupas, podia gritar, podia tocar flauta sem recorrer a qualquer técnica específica e pouco importaria se não fosse música e se o resultado fosse incorrecto. Há tribos perdidas por aí que usam a mesma expressão para designar música, dança ou qualquer expressão artística, mesmo que nem saibam o que quer dizer arte. Ninguém o sabe. Podia ser livre sem medidas, podia evocar o mundo naquilo que fizesse errado. Depois, convidava-te para construíres coisas perdidas comigo. Coisas que não seriam de mais ninguém.

sábado, março 08, 2014

O lugar estranho

Os dias passavam, alheios, cheios daquilo que enche a vida de quem tece todos os dias o mesmo tecido, com o mesmo grito do tear mal oleado. Ele caminhava com alguma agilidade desnecessária e procurava segredos nas ruas óbvias. Às vezes encontrava-os. No dia seguinte, esquecia-os. As mesmas botas, a mesma mala a tiracolo, a mesma calçada, os mesmos cheiros, as mesmas vozes, as mesmas indignações, os mesmos desconhecidos, a mesma folha que caía sempre da mesma árvore. Contudo, Heráclito contaminou o mundo com a ideia itinerante de que nada se mantém tal como está. Assim, nenhum dia foi igual ao outro. A percepção que ele tinha dos dias vazios é que os tornava iguais. E até isso mudou. De repente, lá estava ela. As regras não a afectavam e a luz jorrava dela. Não era apenas um reflexo, era o conceito de luz em si. Ela emanava, mesmo que fosse só para ele. A partir dessa epifania, nenhum dia voltou a estar vazio daquilo que os enchia até esse preciso momento. Mesmo quando ela não estava, ele permitia-se conhecer segredos e desvendá-los logo de seguida, só para dar lugar a mais segredos. Então, ele arrastava-se pela vida, leve e carregado daquilo que não se diz. Um dia, ela regressou ao passado, desviou-se, abriu um trilho por entre arbustos que ele nem tinha percebido que ali pairavam e desapareceu.  Ele voltou a estar pesado de tão cheio de nada. A leveza foi substituída pela contradição. OS dias voltaram a ser cópias mal impressas uns dos outros.
Num desses regressos sórdidos a casa, sentiu uma comichão nas costas. Lembrou-se dumas palavras da Maria Teresa Horta e saltou pela janela e não caiu. Deixou algumas penas para trás e vestígios duma existência de que ninguém viria a lembrar-se. Regressou àquele estranho lugar onde nunca estivera.

quinta-feira, outubro 18, 2012

Sete minutos

Numa fase da minha vida, cuja memória é tão distante como próxima, via todos os dias, à mesma hora, um homem sentado à porta da ruína dum moinho que ainda hoje existe no mesmo estado invariavelmente decadente. Às oito horas da manhã, durante precisamente sete minutos, o homem escrevinhava minuciosamente num papel. Aparentava ter mais de setenta anos de idade, usava uma boina castanha, um sobretudo preto, difuso de tão gasto, e uns sapatos de couro castanhos, que, ao contrário das pessoas, estavam tão velhos que mantinham um estranho ar trocista, como se estivessem sempre a sorrir, a adivinhar uma boca escancarada.
Não costumo agir desta forma mas um dia senti-me demasiado curioso e decidi abordar o homem. Saí de casa mais cedo e sentei-me no mesmo degrau onde ele supostamente estaria a rabiscar passados uns minutos. Começou a chuviscar e, exactamente à hora esperada, eu continuava sozinho. Desisti e segui o meu caminho. No dia seguinte, sem esperança ou com a ideia de que a presença do homem naquele local era mais uma obra do acaso do que premeditação, continuei o meu trajecto. Estava um dia frio e soalheiro de Inverno. Já sem chuva, à mesma hora, no mesmo local, lá estava o estranho senhor que começava a habitar a minha imaginação. Começava a pensá-lo sob uma série de perspectivas e nenhuma delas simpática. Desde um antigo espião da Segunda Guerra Mundial, obviamente ao serviço do Partido Nacional Socialista Alemão, até um maluquinho evadido dum hospital psiquiátrico, ocorreram-me vários pensamentos nefastos.
No dia seguinte, resolvi continuar a minha demanda pela satisfação da curiosidade que agora me corrompia. Sentei-me no mesmo degrau precisamente três minutos antes das oito horas e esperei pelo misterioso ente. O meu coração acelerou quando o vi a aproximar-se. Tinha de arranjar uma desculpa para estar ali. Não podia sequer acender um cigarro porque não fumava. Que raio estava eu a fazer ali? Ele chegou antes que eu pudesse agir ou pensar. Com movimentos calculados, sorriu para mim, levantou cordialmente a pala da boina sob a forma de cumprimento e perguntou-me se naquele degrau cabiam dois. Com um ar comprometido, como se estivesse a congeminar qualquer coisa ilegal, respondi-lhe um "pois" vago e sumido. Ele sorriu e sentou-se. Tirou do bolso uns papéis amarfanhados e começou a rabiscar aquilo que eu já sabia que ele rabiscaria. Na verdade, eu não conhecia o conteúdo daquela produção de papel gasto associado a um lápis diminuto, usado ao extremo, mas, depois de levantado o véu, nada voltou a ser o que era. Nem para mim nem para quem me lê.
O papel, velho e sujo, tinha linhas impressas. Vários grupos de cinco linhas, para ser mais exacto. O homem rabiscava nelas traços horizontais, verticais, bolas pretas pequeninas, circunferências minúsculas, símbolos herméticos para a maioria das pessoas e números. Com uma técnica própria de quem está muito habituado a fazê-lo, o homem escrevia música. Os papéis, apesar daquele ar de lixo, estavam vazios e podiam ser preenchidos com aquilo que ele queria criar. Um poeta de sons, como acabei por lhe chamar mais tarde. Como tinha transposto a barreira da curiosidade e como já não poderia voltar atrás, apresentei-me ao senhor. Com um ar absurdamente infantil, olhos a brilhar e boca insegura, disse-lhe o meu nome e estendi-lhe a mão. Todos os meus gestos foram correspondidos, disse-me que se chamava António Rosado, mas regressava sempre ao trabalho em curso, como se o tempo nunca fosse suficiente. Passaram sete minutos e ele parou de escrever. Embrulhou os papéis no bolso, sorriu, despediu-se e disse-me, pela primeira vez, com um ar pueril, "até amanhã". No dia seguinte, ainda mais ansioso, voltei ao local. O ritual voltou a cumprir-se. O mesmo cumprimento, outros papéis no mesmo estado despreocupado, os mesmos símbolos mas com outra disposição no espaço. A mesma duração do momento. Durante sete minutos escrevia para depois se levantar e ir-se embora. Os dias passaram e eu aproximei-me mais. Uma vez, perguntei-lhe por que escrevia músicas diferentes todos os dias à mesma hora e durante precisamente sete minutos. Ele deu uma gargalhada sonora, com uma vitalidade imprópria para a idade que aparentava ter, e elogiou a minha capacidade de observação. Rapidamente, disse-me que me contaria tudo, mas só depois de passarem os sete minutos. Foram os minutos mais longos da minha vida. Estava ávido por aquela história, fosse ela qual fosse. Durante os três dias seguintes, depois de escrever música durante sete minutos, António revelou-me o segredo, que era apenas a sua história.
Quando este meu mais recente amigo tinha vinte e dois anos, resolveu fazer uma viagem pelo Mediterrâneo, que o levou desde a Grécia, com passagens por algumas ilhas italianas, Malta e Sul de Espanha, até lugares remotos do continente africano, daqueles que não aparecem nos roteiros turísticos. Durante toda a vida, até àquela tenra idade, que naquela altura já implicava alguma responsabilidade, António só se dedicara ao estudo da música, tanto no sentido teórico como prático. Tinha escolhido o piano como primeiro instrumento, por imposição dos pais, porque era o instrumento que alegrava os serões burgueses onde fora educado, e o violoncelo, como segundo instrumento, por pura vocação. Nascido em mil novecentos e trinta e nove, aos vinte e dois anos teria de obrigatoriamente cumprir o serviço militar. Tendo em conta o contexto histórico, seria enviado para Angola ou Moçambique para lutar uma guerra por um território que não pertencia a quem o reclamava. Bom, por tudo isto, escolhera fugir, por isso iniciou uma viagem sem tempo e sem itinerário. Por entre situações de conflito, prisões africanas indizíveis, dias perdidos em florestas esquecidas, aventuras a tentar fugir de animais selvagens e doenças esquisitas que não matavam mas moíam, este jovem músico acabou por se encontrar, em todos os sentidos, nas ruas do Cairo, no Egipto. Longe de casa, sem dinheiro mas com a firmeza da juventude, decidiu permanecer algum tempo na capital egípcia. Depois de provar todas as suas capacidades intelectuais e de aprender a falar e a escrever correctamente arábico egípcio, ainda que para isso tivesse de mendigar nas ruas durante dois meses exaustivos, António conseguiu arranjar um trabalho como moço de recados na segunda universidade mais antiga do mundo, a Universidade de Al-Azhar, construída como mesquita e escola de teologia no século X.
Certa manhã, enquanto passava na Praça Tahrir, depois de ter ido entregar uma carta do reitor aos correios, ouviu um som familiar que vinha da entrada do Museu Egípcio. Era um som antigo, ocidental e ao mesmo tempo familiar. Uma rapariga, com cerca de dezanove anos, egípcia, tocava um oboé barroco, feito em buxo, que é incomum naquela zona de África. Ficou durante dez minutos e seis segundos completamente suspenso a olhar para aquela criatura, moldada à imagem daquilo que seria uma deusa grega clássica, mas com um ar exótico, africano. Tocou o concerto para oboé em Ré menor, de Alessandro Marcello, um compositor italiano que nasceu no século XVII. Aquele momento de revelação parecia justificar toda aquela viagem improvisada e nada voltaria a ser da mesma forma. Aquele foi o primeiro encontro, rodeado por uma multidão que acompanhava o som rouco e fluído do oboé, mas mais se seguiriam. Ela não estava simplesmente a apresentar aquele concerto perante um público inesperado. Ela era uma sensação conhecida, tímida e virtuosa que transbordava tudo aquilo que os grandes especialistas consideravam ser o objectivo dos compositores barrocos, com a ornamentação própria, a afinação rigorosa e a técnica perfeita. Apesar de tudo, e dado o papel das mulheres num país árabe, ainda que seja evoluído, o olhar da rapariga, vago e concentrado, parecia triste. Ele aproximou-se tanto quanto pôde da entrada do Museu Egípcio, por entre aquele aparato solene, e conseguiu ver dois cartazes no chão que anunciavam o concerto. Ela chamava-se Shirin El-Birjandi e era filha do grande compositor egípcio Sinan El-Birjandi, falecido na sequência dum acidente, alguns anos antes. António ficara até ao fim do concerto e esperou que a multidão se dispersasse, com o objectivo de se aproximar dela, tentar falar com ela, perceber a música, eventualmente conhecê-la ou simplesmente ouvi-la outra vez, muitas mais vezes, todas as que ela permitisse. Ela andava sempre acompanhada por dois homens que a tratavam com muita reverência e nunca a deixavam sozinha. Mais tarde, o jovem músico agora apaixonado, percebeu que eram tios dela que ajudavam na árdua tarefa de a educar, a pedido da mãe de Shirin, que teria de educar a filha sozinha num contexto social desafiante para qualquer mulher. António, movido pelo coração e pela música que nunca mais sairia de dentro dele, passou a seguir Shirin e os tios para todo o lado, tendo em conta o tempo disponível deixado livre pelo trabalho na universidade. Um dia, quando a tímida oboísta conversava com a mãe à porta duma mesquita, António ouviu-a dizer que daí a dois dias teria de ir a uma determinada loja de música comprar canas e um tudel para fazer uma palheta para o oboé. Aquela seria a oportunidade que o nosso jovem violoncelista esperava para conhecer Shirin. No mesmo dia, António juntou todo o dinheiro que tinha, comprou algumas roupas que iriam fazê-lo parecer menos pobre e congeminou um plano infalível para se aproximar. Dois dias depois, António esperou durante algumas horas que a aguardada comitiva de Shirin aparecesse. Quando a viu ao longe, entrou na loja, pediu ao empregado para lhe mostrar o melhor violoncelo que tinha para vender e insistiu em experimentá-lo. Como António não tinha um ar vulgar, agora com roupas novas, não houve qualquer hesitação por parte do comerciante. Quando Shirin entrou na loja, António tocava uma suite de Bach para violoncelo, enquanto se fingia alheado. A técnica não era perfeita, mas o que o movia era mais forte do que a música em si. A vibração das cordas do Montagnana caríssimo que António tocava percorreu a jovem egípcia de forma holística. Aquilo que havia nela e que o cativou, agora aproximava-se de Shirin e libertava-a. Naquele exacto momento, os olhos de Shirin não mostraram tristeza. Toda a gente na loja esperou que António terminasse. No fim, houve lugar para palmas e para uma aproximação. Um dos tios de Shirin, afável, perguntou a António quem era e de onde vinha, uma vez que visivelmente não era egípcio. A história do jovem violoncelista interessou a esta família egípcia e começaram a convidá-lo para ir lá a casa, informalmente, para partilhar música e para transcrever algumas partituras, uma vez que o trabalho de António na universidade mal lhe permitia sobreviver. Os dias foram passando e a afeição de António por Shirin foi crescendo, como se isso fosse possível. Afinal, este músico aventureiro sentiu pela jovem egípcia tudo aquilo que havia para sentir desde o primeiro momento. Movido pela paixão, que se plasmava no conceito de amor puro, António só sonhava começar uma relação com Shirin, que era duma classe social superior e seguia preceitos culturais diferentes. As barreiras religiosas também não ajudavam a concretização daquele encontro de vontades de forma permanente. Contudo, António era correspondido e sabia-o. Apesar de todas as contrariedades, a mãe de Shirin e a restante família sempre souberam que os olhos da jovem egípcia deixaram de estar tristes desde aquele dia em que conheceu António. Perder o pai numa fase tão desprotegida da vida duma menina egípcia deixava marcas emocionais, que ficaram esbatidas quando a música de António, polvilhada dele próprio, encontraram a alma de Shirin. A matriarca egípcia, sem consultar a filha, decidiu que a felicidade de Shirin passaria por António, sem qualquer dúvida, e isso implicaria deixar que a filha fosse viver para fora do Egipto, onde quer que fosse que os dois encontrassem um abrigo suficiente para eles e para a música que sempre existiria. Um dia, quando António, sorridente e cada vez mais forte, foi visitar Shirin, a mãe pediu-lhe para falar com ele a sós. Ela sabia que o violoncelista nunca deixaria Shirin e que estaria lá para ela, acontecesse o que acontecesse, mas tinha de ter a certeza. Por tudo isto, pediu-lhe que ele compusesse, em sete minutos, a melodia mais bonita que alguma vez existiu. Seria uma prenda para Shirin. Se todos aprovassem aquela composição musical como sendo a obra mais magnífica alguma vez construída, os dois seriam livres para casar e para procurar o lar onde bem entendessem, ainda que isso implicasse a ida da jovem egípcia para longe do leito materno. O número sete é uma referência aos patamares do céu comuns a tantas religiões, por isso é que a mãe de Shirin lhe pediu esta prova, porque teria a certeza que a sua filha seria feliz para sempre. António, apesar de ter medo, agarrou num papel pautado, que trazia sempre consigo em virtude do trabalho desempenhado para a família Al-Birjandi, e durante exactamente sete minutos trabalhou. No fim, entregou a pauta à mãe de Shirin e pediu-lhe que a tocasse no piano. A composição chamava-se سبع دقائق (Sete Minutos). Nada preparara as pessoas que ouviram aquilo pela primeira vez. A música entranhou-se pelos poros de todos, remexeu-os por dentro, tocou-lhe em locais esquecidos numa memória que todos julgavam não ter. A Sete Minutos abriu a porta ao amor dos dois jovens músicos como uma tempestade. Era mais forte do que um cataclismo ou do que o nascer do Sol.
António decidiu voltar a casa, onde poderia ser livre com Shirin e onde ambos poderiam dar aulas de música, tocar, ter filhos. Além disso, haveria sempre viagens para o Egipto, quando quisessem.
Depois de Abril de mil novecentos e setenta e quatro, o casal conseguiu ter liberdade para viver. Compraram um moinho na periferia de Lisboa, que conseguiram transformar numa casa e tiveram dois filhos. Passados uns anos, decidiram ir morar para perto do mar, venderam o moinho a uma empresa qualquer e compraram uma casinha em Sintra, onde puderam criar os filhos até hoje. A primeira vez que entraram no moinho, às oito horas da manhã, com a consolidação da família que construíram e do amor inabalável que sentiram um pelo outro desde o primeiro momento, António decidiu que todos os dias iria compor para Shirin a música mais bonita alguma vez composta. Iria superar-se a si próprio e iria trazer sempre a alegria à sua esposa.
Todos os dias, o meu mais recente amigo senta-se no degrau do moinho meio demolido e esquecido e compõe a música mais bonita do mundo para Shirin. Depois, volta para casa e celebra a vida, até ao último suspiro de cada um deles. Só interrompe este ritual em dias de chuva. No Cairo o clima tórrido impede que o oboé esteja sempre afinado, por isso Shirin prefere os dias de chuva para tocar. António, quando chove, passa o dia todo a tocar com Shirin aquilo que vai compondo todos os dias, por isso não tem tempo para mais nada.  Quando chove, a música de ambos encontra-se e transforma-se em cada um deles, para sempre. Nos outros dias, encontro-o e vejo-o a transformar pequenos símbolos em magia.

terça-feira, outubro 16, 2012

A chuva lava (quase) tudo


Todas as cidades têm segredos. Pelas ruas agora molhadas pela chuva, escorrem memórias. Quando cai água do céu, os passeios e as estradas costumam ficar limpos. Vai a sujidade e vão os pensamentos. Mas esta noite não. Os clarões matinais de carros da polícia em emergência, agora parados, evidenciam uma investigação que será sempre inconclusiva. O corpo do Teófilo, inerte, com uma fronteira de giz a separá-lo do resto do mundo, é mais um fantasma que corrói as pedras dos edifícios. Agora, tudo é segredo, mas ainda há dois dias tudo queria ser revelado.

“Teófilo, Teófilo pá”, gritou o Alberto entre dois saltos apressados na passagem de peões.
“Alberto, desculpa, não estava cá, estava noutro lado”, justificou o amigo.
A multidão da hora de ponta era como um nevoeiro compacto que limitava o diálogo entre os dois amigos de infância.
“Ias mesmo com a cabeça no ar, nem parecias tu, mas esse casaco de cabedal de cor-de-burro-quando-foge, que tens há mais de quinze anos, não me enganou”, sorriu Alberto. “Como é que estás? Por onde tens andado? Ninguém te vê há meses, desde que me disseste que andavas com outra gaja.”
“Desculpa Alberto, tens razão”, murmurou Teófilo, “tenho andado ausente de quase tudo. Acho que é mais do que ausente, é triste.”
“Então pá, tu que costumavas contar anedotas a noite toda? Bem, deve ser mesmo grave. Até tenho medo de te perguntar”, lançou Alberto, enquanto acendia um cigarro. “Mas não aqui, não quero saber da tua vida aqui. Vamos ali ao café, onde podemos meter a conversa em dia”, continuou.
“Desculpa, Alberto… não estou bem, mesmo nada bem. Pode ficar para outro dia?”
“Não, não pode. Não há nada que tenhas de fazer agora que não possa esperar uns minutos”. Alberto era incisivo, desde os tempos do liceu, mas isso era também sinal de preocupação. Desde namoradas partilhadas, aulas perdidas para ir jogar snooker, até à morte do pai de Alberto, os dois amigos tinham vivido tudo juntos. Mas é difícil equilibrar a vida e, como mais cedo ou mais tarde se descobre, nada dura para sempre.
“Está bem, vamos lá, então”, desistiu Teófilo. “Se não posso lutar contra ti, mais vale juntar-me”, disse, com um sorriso esquecido.
Não se viam há um ano e meio e, entretanto, Alberto já era pai de duas gémeas e estava a morar numa casa nova, com horizontes ainda por explorar mas com certezas de ocasos e madrugadas sem solidão.
Depois de uns minutos onde Alberto mostrou as fotografias das filhas, que, além de lhe povoarem o telemóvel, estavam muito bem instaladas num relógio de pulso, começaram a dirigir-se para a vida do mais atormentado dos dois. Teófilo deixava escapar um esgar sorridente, mas era só um reflexo.
A conversa acabou por chegar ao objectivo inicial, à vida, ou à anulação desta, de Teófilo.
“Lembras-te de te dizer que andava com uma gaja nova, não lembras?”
“Sim, claro”, assentiu Alberto.
“Bom, eu nunca contei aos meus pais. Deixei a relação arrastar-se. Sabes, eu nem gostava dela, mas ela era… intensa, deixava-me doido!” Teófilo brilhava, como uma criança a tentar reanimar um urso de peluche. “O que eu nunca te contei é que ela era… bom, ainda é… ela é preta.” Os olhos de Teófilo perderam-se no chão, envergonhados sem saber bem porquê.
“Homem, que mal é que isso tem? Se ela te deixa assim doido, isso é bom! Não é a cor da pele que interessa, é a mulher que ela é!”
“Eu sei, mas não consigo evitar. Deixei-me levar pela «fome», não foi pelo coração ou pela vontade de constituir família. Só queria «comê-la»!” Teófilo estava cada vez mais incomodado. Era nítido, ainda para mais quando a toalha da mesa diminuta do café já estava toda amarfanhada naquelas mãos inquietas.
“Pá, fazes o que quiseres. Qual é o problema? Não gostas dela, vai para outra! Continua a tua vida e pronto!”
“Alberto, não é assim tão simples. Sabes, errei muito… é que ela está grávida.”
“O quê? Como pudeste? Ela não tomava a pílula? Tu não usavas preservativo?”
“Porra, ela disse-me que tomava a pílula e eu acreditei. Sabes como o preservativo é lixado. Eu detesto usar, aquilo incomoda, deixa um cheiro esquisito, não dá jeito nenhum, mesmo no momento, meter aquilo. Percebes-me?” Teófilo parecia mais activo, mas ainda sombrio.
“Então, pá, mas agora é fácil resolver o problema. Posso indicar-te uma clínica, ficas com isso resolvido. Ela é bem tratada. Sabes, antes das gémeas a minha mulher fez um aborto. Mas agora que penso melhor, como é que tu foste à gaja sem preservativo? Já a conhecias bem?”
“Não, foi logo no segundo encontro.”
“Pá, mesmo com pílula, só deves ter sexo com a pessoa depois de ambos fazerem testes de despiste de doenças venéreas! És tão irresponsável, porra!”
“Eu sei, Alberto, mas foi mais forte, sabes como são os gajos. Só pensam com uma cabeça e não é a que está entre os ombros.” Teófilo já sorria, se calhar com vergonha dele próprio, mas já o admitira, já tinha partilhado o fardo.
“Ouve Teófilo, conta comigo, eu estarei sempre do teu lado, principalmente por todo o apoio que me deste quando o meu pai morreu. Eu devo-te isso.”
“Alberto, não me deves nada, eu só preciso de tempo. Tenho de decidir. Há outro assunto que me incomoda e desse não posso contar-te nada… só quero mesmo pensar. Olha, vou andando. Mantemo-nos em contacto.”
“Olha, conta comigo, por favor, não hesites, pá!”
Houve tempo para um aperto de mão e um olhar que se adivinhava definitivo. Alberto não sabia de nada, mas aquele seria o último momento entre os dois. Não sabiam, nenhum dos dois o sabia, mas ambos tinham a informação lá dentro. Era o último olhar. No dia seguinte, pela segunda vez nessa semana, o irmão mais velho da mulher que transportava a semente de Teófilo procurou esclarecer o assunto. As comunidades africanas gostam muito de sublinhar a honra e a dignidade. Teófilo pensava que era como nos filmes, que bastava dar dinheiro e que tudo ficava resolvido. Mas o dinheiro nunca é suficiente para limpar a consciência. Na verdade, o dinheiro só suja. A chuva continuava a cair, mas nessa noite a água misturou-se com sangue. Uma faca cravada nas costas de Teófilo, mesmo à porta do prédio onde morava, marcaria uma dignidade abalada, uma honra que nunca existiu e uma vida que deixaria de o ser.

sexta-feira, abril 15, 2011

Prólogo dum livro que nunca foi escrito

Sempre gostei de ruas feitas de pedra. Têm de ser toscas, feitas com pedras mal talhadas mas que, como uma entropia absoluta que acaba por tocar a ordem, encaixam umas nas outras. Há uma rua assim numa cidade que não interessa nomear. A estrada, feita de pedras irregulares, é um pesadelo para os proprietários de carros especialmente desenhados para circularem em estradas lisas e rápidas. Esta rua é tão antiga que não há registos de quando foi feita. Os prédios acompanham-na, apesar das modificações modernas. São casas com paredes amarelecidas e rugosas, com algumas fendas, que em vez de sugerirem fragilidade por acção do tempo mostram como estas construções rudes vão manter-se até que algum arqueólogo, num futuro inimaginável, decida preservar estas paredes feitas de história.
Num dos edifícios desta rua, cuja cor varia entre o cinzento-escuro e o ocre, há uma livraria. Por dentro, cheira a mar antigo, como se de um barco se tratasse, e o interior é excessivamente forrado a madeira escura, talvez carvalho. Não há adornos, não há objectos úteis de utilização diária. Os candeeiros já são alimentados por electricidade, mas os fios expostos mostram falta de manutenção. Não é descuido, é o tempo que fica marcado nas coisas.
O livreiro é como o local: antigo e cheio de memórias difusas. Tem uma farta cabeleira branca e pele enrugada, como se fosse um pescador que permitiu que todos os dias da sua vida a pele envelhecesse por acção do Sol. Usa sempre uma camisa imaculadamente branca por baixo duns suspensórios castanhos, que aguentam umas calças de ganga, azuis, tão gastas que deixam antever buracos vindouros. É sempre simpático com os clientes mas nunca dá informações sobre os livros que vende. Na verdade, todos os livros expostos só são vendidos ali. Cada exemplar é único. Não há catálogos, não há registo de nenhum daqueles livros em editoras, principalmente naquelas com nomes pomposos, normalmente construídos a partir de algum trocadilho em latim. Os nomes dos autores parecem anagramas ou pseudónimos alucinados. Os livros não estão dispostos por ordem alfabética ou por qualquer outra ordem que faça sentido, mas também não estão ao acaso. Cada pessoa que entra na livraria está sujeita a uma espécie de ironia que não está determinada mas que também não acontece por acaso. Seja como for, importa reter nesta história que ninguém sai da livraria sem pelo menos levar consigo um livro. Não é preciso ter dinheiro, os livros podem ser pagos ou não, mas estão destinados ao seu leitor, que depois poderá dá-los ou emprestá-los a quem quiser.
Um dia, como outro qualquer, um carro preto e brilhante parou à porta da livraria. Um homem com menos de quarenta anos, enérgico, com uma mochila de couro e uns óculos de sol, saiu do veículo, com alguma pressa, e entrou na livraria, sempre com um ar afoito. Sorridente e despachado, perguntou ao livreiro se tinha um livro do ensino básico escrito pela Orízia Alhinho nos anos 80. Explicou que tinha um filho com quatro anos e que queria iniciá-lo na leitura agora, desta forma, com um livro que lhe tinha trazido muitas referências. O livreiro só lamentou a falta de livros dessa natureza, mas disponibilizou todos os outros que estavam nas estantes, já bastante gastas e não muito direitas. O homem decidiu sair sem levar nenhum livro. Já em casa, cansado, enquanto vasculhava as coisas que tinha na mochila, o homem encontrou um livro velho, com uma capa de couro seco, sem cor. O livro tinha um título escrito à mão e de forma imprecisa com caneta de feltro. Por entre cores indefinidas pintadas pelo tempo na capa do livro, podia ler-se o título que, como seria impossível prever, mudaria a vida do homem:”O coleccionador de inutilidades”. Apesar de não saber de onde viera aquele livro, abriu-o e pôde descobrir que se tratava dum conto extenso escrito para crianças. Nessa mesma noite, antes de dormir, sentou-se à beira da cama do filho, de apenas quatro anos, e começou a ler-lhe a história. (…)

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

Húmus humano

No outro dia, como quem tropeça numa pedra saliente na calçada, encontrei uma notícia sobre uma mulher que, algures nos Estados Unidos, tinha assassinado o filho ou filha de três meses. Segundo a própria, o bebé estava a chorar muito e isso estava a impossibilitá-la de jogar Farmville. Abanou o bebé até este deixar de chorar. Fê-lo em duas fases, parou a meio para fumar um cigarro. Foi condenada a 50 anos de prisão.
Não quero fazer uma análise moralista desta situação. Não quero demonstrar asco ou raiva perante este comportamento. Os alicerces da civilização, que nos permitem viver como seres sociais, já não existem. O mundo faleceu e está a decompor-se, pelo menos nalguns sítios. As demandas por paraísos no século XIX, empreendidas por exploradores ávidos de aventuras, já só existem dentro das pessoas. Todos os dias, invariavelmente, os homens procuram fugir deles próprios e da falta de sentido. A simplicidade natural de todas as coisas esvai-se em hemorragias de medo. O resultado é a perda de tudo. Nada se transforma, tudo se perde.
Ainda assim, o mundo merece que se lute por ele. É o único que temos.

quinta-feira, fevereiro 25, 2010

Conto-te uma história – Parte I

Nem todas as histórias começam numa terra distante, mas todas passam por sítios tão remotos que só podemos imaginá-los. Conto-te isto como se estivéssemos perto da lareira, como os avós fazem aos netos.
Certo dia, disseste-me que não sonhas. Toda a gente sonha. Acho que só te esqueceste de como o fazer. Anda, segue as minhas palavras e tenta sonhar.
Era uma vez, algures nos arredores de Lisboa, num outro tempo, um menino que morava com o pai numa quinta. Era um lugar pobre, onde só havia ovelhas, uma vaca escanzelada, duas galinhas e um cão muito velho. O cão chamava-se Tiracolo porque foi encontrado abandonado perto duma estrada quando era muito novinho e estava ferido nas duas patas dianteiras, pelo que só puderam transportá-lo num saco que o pai do menino usava a tiracolo, onde guardava o almoço diário. O nome ficou. Nessa altura, as ovelhas abundavam e um cão seria sempre útil para afastar os lobos e para dar algum alento a um pastor solitário com um filho tão pequeno. A família ficou completa e o cão, inteligente e fiel, veio trazer um resquício de alegria a uma casa soturna, depois da morte, por doença, da mãe do menino.
Aparentemente, o menino era igual a todos os outros mas as histórias feitas de normalidade não ocupam lugar nas bibliotecas e no coração dos poetas. O menino, que era extraordinário, conseguia sentir a alegria e a tristeza de todos os seres que o rodeavam. Não parece ser um grande poder, mas ele não se limitava a escutar os animais, ele conseguia fazê-los sentir-se melhor. Encerrava nele próprio a tristeza que mais ninguém queria sentir. Foi assim que o nosso Tiracolo conseguiu sobreviver às feridas que tinha nas patas quando foi encontrado. O dono anterior só queria usá-lo para caçar coelhos e, desde muito cedo, batia-lhe para habituá-lo à inclemência da vida que o esperava. Um dia, bateu-lhe de mais e abandonou-o. O menino, que na altura não teria mais de três anos de idade, percebeu que um animal em sofrimento estava perto do lugar onde o pai apascentava as ovelhas e correu para salvá-lo. O menino abraçou o animal ferido e reservou para ele mesmo as dores das injúrias físicas. Foi uma questão de tempo até o Tiracolo ficar apto a correr atrás dos animais da quinta, agora impacientes.
Viveram plenos com a natureza, às vezes cruel e imprevisível, todos juntos, até que um dia um homem demasiado educado e atencioso passou perto da modesta casa onde moravam. Era alto, mais ou menos robusto, e ostentava uma barriga que não ocultava os gostos gastronómicos requintados desta misteriosa personagem. Alegou ser um vendedor ambulante que, com a sua caravana, percorria todos os países que conseguisse. Tinha um sotaque estranho, como se tivesse nascido num qualquer país de leste ou como se falasse todas as línguas do mundo e já se tivesse esquecido de onde viera. Nunca disse um nome, mas era culto e conhecia segredos. Inspirava respeito mas era afável. Pediu, com cordialidade, ao pai do menino que o deixasse passar a noite na quinta e que desse de beber aos cavalos. A generosidade daqueles que têm pouco é desconcertante e o pai do menino não tinha nada, só um filho e alguns animais. Ofereceu a casa ao homem, partilhou a comida que tinha e não pediu nada em troca.
A casa só tinha uma divisão, que era modestamente separada por móveis velhos e vagamente comidos por larvas de insectos. Nessa noite, o menino dormiu com o pai e o homem ficou instalado no sofá. Poderia ter ficado na caravana, mas o dono da casa insistiu com o inesperado visitante para que este tivesse mais algum conforto do que era habitual.
Não se ouviu um único ruído. Durante a noite, com gestos leves como uma neblina, o homem tirou o menino, agora adormecido, da cama do pai, meteu-o dentro dum saco de lona, encafuou-o junto das tralhas que tinha na caravana e partiu.
Para trás, ficaram um rasto volúvel de rodas de madeira, memórias e as lágrimas do pai. Também o Tiracolo tinha desaparecido.
Na manhã seguinte, mais fria e insuportável, o menino acordou amarrado dentro dum saco escuro e fétido. Chorou mas pouco se ouviu. Às vezes, quando a dor é demasiado forte, não se consegue chorar. As crianças sabem-no.
Sentiu umas mãos gigantescas a abrirem o saco, a puxá-lo para fora e a agarrá-lo como se estivessem a preparar uma galinha para a refeição. Viu um grupo de homens grandes, enormes, com roupas feitas de peles de animais, mal barbeados e nauseabundos. O que o agarrava tinha uma cicatriz na metade esquerda da cara, o que condizia com a ausência do olho correspondente. Falavam uma língua complexa, só com consoantes, que o menino nunca ouvira. Havia algumas mulheres naquele sítio, obesas e sem a maior parte dos dentes. Gostavam de se sentar ao colo dos homens que mais alto gritavam.
O menino passou pelas mãos de vários homens que o olhavam com um misto de escárnio e orgulho, como se ele fosse um troféu que merecesse estar numa prateleira esquecida. Quantos mais homens lhe tocavam, mais tristeza o menino sentia e mais gargalhadas se ouviam naquele lugar.
Prenderam-no com uma corrente a um canto daquilo que parecia ser um bar ou uma taberna, mas sem regras e com toda a gente a comunicar com agressões físicas e olhares incisivos.
Passaram alguns dias até que alguém atirou um pedaço de pão ao menino. Foi a única refeição nessa semana. À medida que o tempo foi passando, os homens mostravam-se mais comunicativos. Davam restos das refeições ao menino e mantinham-no vivo, acorrentado e rodeado pelos seus próprios dejectos.
Passou um mês. Passaram vários meses. Passou demasiado tempo. O menino recordava a vida na quinta do pai como uma memória distante. Naquele lugar, rodeado por aqueles seres, só sentia tristeza. Sem conseguir controlar-se, fraco, sujo, foi absorvendo as mágoas e o passado tenebroso de cada um dos homens que se aproximavam dele. O menino, agora com cerca de dezasseis anos, quase um homem, era um adorno daquele lugar. Tirava a dor dos que estavam por perto e ficava amargurado, sozinho e esquecido.
Mas, para além de dor, os homens passavam-lhe memórias. O nosso jovem herói aprendeu línguas estranhas, construiu histórias, conheceu pessoas que nunca viu, tudo através daqueles homens improváveis. Ele parecia frágil e magro mas agarrava-se à esperança de voltar a ver o pai e de regressar à quinta.
Num fim de tarde estival, daqueles que aquecem as almas mais frias, aconteceu algo que ninguém poderia imaginar naquele lugar desprezado. O mesmo homem alto, robusto e cruel, trouxe mais um saco de lona. De lá de dentro, sabe-se lá vinda de onde, saiu uma menina, talvez um pouco mais velha do que o rapaz. Ela tinha os olhos verdes, como um mar profundo, e uma tristeza proporcional à beleza. Pela primeira vez, o menino sentiu-se equilibrado. Aquela pessoa, frágil e magoada, conseguia compensar, só com a presença, tudo o que ele tinha passado. Ele voltara a ser o mesmo menino. A memória da quinta do pai ficou mais viva e a esperança de regressar estava mais forte. Acorrentaram-na ao lado dele. Ela não levantava a cabeça, não olhava para ele, não sorria. Chorava, mantinha-se distante. (continua)