sexta-feira, abril 15, 2011

Prólogo dum livro que nunca foi escrito

Sempre gostei de ruas feitas de pedra. Têm de ser toscas, feitas com pedras mal talhadas mas que, como uma entropia absoluta que acaba por tocar a ordem, encaixam umas nas outras. Há uma rua assim numa cidade que não interessa nomear. A estrada, feita de pedras irregulares, é um pesadelo para os proprietários de carros especialmente desenhados para circularem em estradas lisas e rápidas. Esta rua é tão antiga que não há registos de quando foi feita. Os prédios acompanham-na, apesar das modificações modernas. São casas com paredes amarelecidas e rugosas, com algumas fendas, que em vez de sugerirem fragilidade por acção do tempo mostram como estas construções rudes vão manter-se até que algum arqueólogo, num futuro inimaginável, decida preservar estas paredes feitas de história.
Num dos edifícios desta rua, cuja cor varia entre o cinzento-escuro e o ocre, há uma livraria. Por dentro, cheira a mar antigo, como se de um barco se tratasse, e o interior é excessivamente forrado a madeira escura, talvez carvalho. Não há adornos, não há objectos úteis de utilização diária. Os candeeiros já são alimentados por electricidade, mas os fios expostos mostram falta de manutenção. Não é descuido, é o tempo que fica marcado nas coisas.
O livreiro é como o local: antigo e cheio de memórias difusas. Tem uma farta cabeleira branca e pele enrugada, como se fosse um pescador que permitiu que todos os dias da sua vida a pele envelhecesse por acção do Sol. Usa sempre uma camisa imaculadamente branca por baixo duns suspensórios castanhos, que aguentam umas calças de ganga, azuis, tão gastas que deixam antever buracos vindouros. É sempre simpático com os clientes mas nunca dá informações sobre os livros que vende. Na verdade, todos os livros expostos só são vendidos ali. Cada exemplar é único. Não há catálogos, não há registo de nenhum daqueles livros em editoras, principalmente naquelas com nomes pomposos, normalmente construídos a partir de algum trocadilho em latim. Os nomes dos autores parecem anagramas ou pseudónimos alucinados. Os livros não estão dispostos por ordem alfabética ou por qualquer outra ordem que faça sentido, mas também não estão ao acaso. Cada pessoa que entra na livraria está sujeita a uma espécie de ironia que não está determinada mas que também não acontece por acaso. Seja como for, importa reter nesta história que ninguém sai da livraria sem pelo menos levar consigo um livro. Não é preciso ter dinheiro, os livros podem ser pagos ou não, mas estão destinados ao seu leitor, que depois poderá dá-los ou emprestá-los a quem quiser.
Um dia, como outro qualquer, um carro preto e brilhante parou à porta da livraria. Um homem com menos de quarenta anos, enérgico, com uma mochila de couro e uns óculos de sol, saiu do veículo, com alguma pressa, e entrou na livraria, sempre com um ar afoito. Sorridente e despachado, perguntou ao livreiro se tinha um livro do ensino básico escrito pela Orízia Alhinho nos anos 80. Explicou que tinha um filho com quatro anos e que queria iniciá-lo na leitura agora, desta forma, com um livro que lhe tinha trazido muitas referências. O livreiro só lamentou a falta de livros dessa natureza, mas disponibilizou todos os outros que estavam nas estantes, já bastante gastas e não muito direitas. O homem decidiu sair sem levar nenhum livro. Já em casa, cansado, enquanto vasculhava as coisas que tinha na mochila, o homem encontrou um livro velho, com uma capa de couro seco, sem cor. O livro tinha um título escrito à mão e de forma imprecisa com caneta de feltro. Por entre cores indefinidas pintadas pelo tempo na capa do livro, podia ler-se o título que, como seria impossível prever, mudaria a vida do homem:”O coleccionador de inutilidades”. Apesar de não saber de onde viera aquele livro, abriu-o e pôde descobrir que se tratava dum conto extenso escrito para crianças. Nessa mesma noite, antes de dormir, sentou-se à beira da cama do filho, de apenas quatro anos, e começou a ler-lhe a história. (…)

2 Comments:

Blogger guuida disse...

Não é descuido, é o tempo que fica marcado nas coisas. Gosto muito!
já leste aquele tipo o Zoran Živkovic? ele tem um livro de contos sobre bibliotecas que me fez lembrar...

6:58 da tarde  
Anonymous cim disse...

http://youtu.be/OOlXMCoAeXg

9:58 da tarde  

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