terça-feira, outubro 16, 2012

A chuva lava (quase) tudo


Todas as cidades têm segredos. Pelas ruas agora molhadas pela chuva, escorrem memórias. Quando cai água do céu, os passeios e as estradas costumam ficar limpos. Vai a sujidade e vão os pensamentos. Mas esta noite não. Os clarões matinais de carros da polícia em emergência, agora parados, evidenciam uma investigação que será sempre inconclusiva. O corpo do Teófilo, inerte, com uma fronteira de giz a separá-lo do resto do mundo, é mais um fantasma que corrói as pedras dos edifícios. Agora, tudo é segredo, mas ainda há dois dias tudo queria ser revelado.

“Teófilo, Teófilo pá”, gritou o Alberto entre dois saltos apressados na passagem de peões.
“Alberto, desculpa, não estava cá, estava noutro lado”, justificou o amigo.
A multidão da hora de ponta era como um nevoeiro compacto que limitava o diálogo entre os dois amigos de infância.
“Ias mesmo com a cabeça no ar, nem parecias tu, mas esse casaco de cabedal de cor-de-burro-quando-foge, que tens há mais de quinze anos, não me enganou”, sorriu Alberto. “Como é que estás? Por onde tens andado? Ninguém te vê há meses, desde que me disseste que andavas com outra gaja.”
“Desculpa Alberto, tens razão”, murmurou Teófilo, “tenho andado ausente de quase tudo. Acho que é mais do que ausente, é triste.”
“Então pá, tu que costumavas contar anedotas a noite toda? Bem, deve ser mesmo grave. Até tenho medo de te perguntar”, lançou Alberto, enquanto acendia um cigarro. “Mas não aqui, não quero saber da tua vida aqui. Vamos ali ao café, onde podemos meter a conversa em dia”, continuou.
“Desculpa, Alberto… não estou bem, mesmo nada bem. Pode ficar para outro dia?”
“Não, não pode. Não há nada que tenhas de fazer agora que não possa esperar uns minutos”. Alberto era incisivo, desde os tempos do liceu, mas isso era também sinal de preocupação. Desde namoradas partilhadas, aulas perdidas para ir jogar snooker, até à morte do pai de Alberto, os dois amigos tinham vivido tudo juntos. Mas é difícil equilibrar a vida e, como mais cedo ou mais tarde se descobre, nada dura para sempre.
“Está bem, vamos lá, então”, desistiu Teófilo. “Se não posso lutar contra ti, mais vale juntar-me”, disse, com um sorriso esquecido.
Não se viam há um ano e meio e, entretanto, Alberto já era pai de duas gémeas e estava a morar numa casa nova, com horizontes ainda por explorar mas com certezas de ocasos e madrugadas sem solidão.
Depois de uns minutos onde Alberto mostrou as fotografias das filhas, que, além de lhe povoarem o telemóvel, estavam muito bem instaladas num relógio de pulso, começaram a dirigir-se para a vida do mais atormentado dos dois. Teófilo deixava escapar um esgar sorridente, mas era só um reflexo.
A conversa acabou por chegar ao objectivo inicial, à vida, ou à anulação desta, de Teófilo.
“Lembras-te de te dizer que andava com uma gaja nova, não lembras?”
“Sim, claro”, assentiu Alberto.
“Bom, eu nunca contei aos meus pais. Deixei a relação arrastar-se. Sabes, eu nem gostava dela, mas ela era… intensa, deixava-me doido!” Teófilo brilhava, como uma criança a tentar reanimar um urso de peluche. “O que eu nunca te contei é que ela era… bom, ainda é… ela é preta.” Os olhos de Teófilo perderam-se no chão, envergonhados sem saber bem porquê.
“Homem, que mal é que isso tem? Se ela te deixa assim doido, isso é bom! Não é a cor da pele que interessa, é a mulher que ela é!”
“Eu sei, mas não consigo evitar. Deixei-me levar pela «fome», não foi pelo coração ou pela vontade de constituir família. Só queria «comê-la»!” Teófilo estava cada vez mais incomodado. Era nítido, ainda para mais quando a toalha da mesa diminuta do café já estava toda amarfanhada naquelas mãos inquietas.
“Pá, fazes o que quiseres. Qual é o problema? Não gostas dela, vai para outra! Continua a tua vida e pronto!”
“Alberto, não é assim tão simples. Sabes, errei muito… é que ela está grávida.”
“O quê? Como pudeste? Ela não tomava a pílula? Tu não usavas preservativo?”
“Porra, ela disse-me que tomava a pílula e eu acreditei. Sabes como o preservativo é lixado. Eu detesto usar, aquilo incomoda, deixa um cheiro esquisito, não dá jeito nenhum, mesmo no momento, meter aquilo. Percebes-me?” Teófilo parecia mais activo, mas ainda sombrio.
“Então, pá, mas agora é fácil resolver o problema. Posso indicar-te uma clínica, ficas com isso resolvido. Ela é bem tratada. Sabes, antes das gémeas a minha mulher fez um aborto. Mas agora que penso melhor, como é que tu foste à gaja sem preservativo? Já a conhecias bem?”
“Não, foi logo no segundo encontro.”
“Pá, mesmo com pílula, só deves ter sexo com a pessoa depois de ambos fazerem testes de despiste de doenças venéreas! És tão irresponsável, porra!”
“Eu sei, Alberto, mas foi mais forte, sabes como são os gajos. Só pensam com uma cabeça e não é a que está entre os ombros.” Teófilo já sorria, se calhar com vergonha dele próprio, mas já o admitira, já tinha partilhado o fardo.
“Ouve Teófilo, conta comigo, eu estarei sempre do teu lado, principalmente por todo o apoio que me deste quando o meu pai morreu. Eu devo-te isso.”
“Alberto, não me deves nada, eu só preciso de tempo. Tenho de decidir. Há outro assunto que me incomoda e desse não posso contar-te nada… só quero mesmo pensar. Olha, vou andando. Mantemo-nos em contacto.”
“Olha, conta comigo, por favor, não hesites, pá!”
Houve tempo para um aperto de mão e um olhar que se adivinhava definitivo. Alberto não sabia de nada, mas aquele seria o último momento entre os dois. Não sabiam, nenhum dos dois o sabia, mas ambos tinham a informação lá dentro. Era o último olhar. No dia seguinte, pela segunda vez nessa semana, o irmão mais velho da mulher que transportava a semente de Teófilo procurou esclarecer o assunto. As comunidades africanas gostam muito de sublinhar a honra e a dignidade. Teófilo pensava que era como nos filmes, que bastava dar dinheiro e que tudo ficava resolvido. Mas o dinheiro nunca é suficiente para limpar a consciência. Na verdade, o dinheiro só suja. A chuva continuava a cair, mas nessa noite a água misturou-se com sangue. Uma faca cravada nas costas de Teófilo, mesmo à porta do prédio onde morava, marcaria uma dignidade abalada, uma honra que nunca existiu e uma vida que deixaria de o ser.