sábado, março 08, 2014

O lugar estranho

Os dias passavam, alheios, cheios daquilo que enche a vida de quem tece todos os dias o mesmo tecido, com o mesmo grito do tear mal oleado. Ele caminhava com alguma agilidade desnecessária e procurava segredos nas ruas óbvias. Às vezes encontrava-os. No dia seguinte, esquecia-os. As mesmas botas, a mesma mala a tiracolo, a mesma calçada, os mesmos cheiros, as mesmas vozes, as mesmas indignações, os mesmos desconhecidos, a mesma folha que caía sempre da mesma árvore. Contudo, Heráclito contaminou o mundo com a ideia itinerante de que nada se mantém tal como está. Assim, nenhum dia foi igual ao outro. A percepção que ele tinha dos dias vazios é que os tornava iguais. E até isso mudou. De repente, lá estava ela. As regras não a afectavam e a luz jorrava dela. Não era apenas um reflexo, era o conceito de luz em si. Ela emanava, mesmo que fosse só para ele. A partir dessa epifania, nenhum dia voltou a estar vazio daquilo que os enchia até esse preciso momento. Mesmo quando ela não estava, ele permitia-se conhecer segredos e desvendá-los logo de seguida, só para dar lugar a mais segredos. Então, ele arrastava-se pela vida, leve e carregado daquilo que não se diz. Um dia, ela regressou ao passado, desviou-se, abriu um trilho por entre arbustos que ele nem tinha percebido que ali pairavam e desapareceu.  Ele voltou a estar pesado de tão cheio de nada. A leveza foi substituída pela contradição. OS dias voltaram a ser cópias mal impressas uns dos outros.
Num desses regressos sórdidos a casa, sentiu uma comichão nas costas. Lembrou-se dumas palavras da Maria Teresa Horta e saltou pela janela e não caiu. Deixou algumas penas para trás e vestígios duma existência de que ninguém viria a lembrar-se. Regressou àquele estranho lugar onde nunca estivera.