terça-feira, abril 10, 2007

Chuva de lágrimas...

Precipitava-se mais uma noite fria de fim de Inverno. O jovem casal procurava abrigo junto ao fogo improvisado, aquele que podiam ter naquele momento. Apesar da esperança renovada que estava na barriga da mãe, o futuro apresentava-se sombrio. Talvez a esperança nem fosse neles mesmos, nem nos próximos tempos, mas apenas naquela réstia de amor incubado. Nenhum dos dois tinha emprego, viviam da caridade dos vizinhos, que também mal sobreviviam na aldeia perdida no espaço, esquecida no tempo.

As noites, estranhamente frias para a época, sucederam-se. Tinham passado quatro meses e já se sentia vida. Os sorrisos discretos do jovem casal escondiam a fome e a dor, e estas escondiam o desespero, a fraqueza substituía a ausência de brilho nos olhos.

Certa noite, mal a chuva mergulhara na aldeia escura, aconteceu o inesperado. A mesma lareira, o mesmo olhar vago e os mesmos sorrisos etéreos, mas não a mesma respiração da cada vez mais fraca mãe. Num esgar poderoso começou a ofegar como se uma cascata de oxigénio jorrasse na garganta seca. Balbuciava palavras sem nexo. O outro progenitor, sem força mas determinado, abraçava-a, suplicava a alguém para que a paz voltasse… pelo menos que a paz voltasse.

De repente, como se o silêncio tivesse conquistado o mundo, sem hesitar, parou tudo. Não se ouvia a chuva. O vento adormecera, o fogo não crepitava. Ela, débil, não chorava. Ao longe, muito ao longe, um choro cavernoso de bebé. Ecoava pueril mas forte. Olharam um para o outro, o choro parou, o fogo voltara à vida, o vento soprava a dar forma à chuva.

Não comentaram nada, mas ambos sabiam de onde tinha vindo o choro. Aquele ventre fértil no meio daquele húmus de casas e pessoas sem futuro emitira o som mais doce de sempre.

Os dias recuperaram a temperatura, o Sol tinha bebido da fonte da juventude. Era o Outono mais quente de sempre e já tinham passado nove meses desde a incubação. Como que a desafiar a lógica da nutrição, a mãe estava forte e pronta a parir. O pai aguardava com impaciência. Numa manhã, quando ele andava na horta, pouco depois do Sol dominar toda a aldeia, ela sentiu um jorro de humidade a sair de dentro dela. Chegara o momento. Enquanto ela se debatia com dores extenuantes, ele corria a buscar a única parteira da aldeia, já velha, mas com a experiência de ter trazido ao mundo todos os habitantes, nos últimos trinta e cinco anos, daquele lugar inexistente.

Chegada a ajuda, pouco diálogo houve. A mulher sabia o que tinha a fazer. Aguardou, tocou a barriga de forma rude e imprecisa e esperou pelo momento. Gritava com a jovem para que esta fizesse força. Os dentes rangiam, o suor escorregava pela pele encardida. Apesar da assistência, a natureza segue sempre o seu rumo. Por entre a carne cansada da mãe, saiu aquele ser pequenino e cheio de vida. Uma menina já com os olhos atentos, como se tivesse nascido antes de ter nascido, chorava a dar as boas vindas ao mundo. A mãe sorria e esvaía-se em sangue. Alguma coisa no parto correra mal. Alguma artéria ou veia naquela amálgama orgânica que não soube manter a sua posição. Pouco havia a fazer. Ela ia adormecer para sempre. Adormeceu calma, com o mesmo sorriso que mantivera durante a gravidez. Tinha tudo aquilo de que precisava e tinha feito brotar vida de si mesma. Adormeceu.

A concordar com a chuva que caiu cinco meses antes, quando se ouviu o choro do bebé, as lágrimas do pai solitário cobriram-lhe a face precocemente enrugada. Os gestos não fluíam, apenas se despedaçava naquele líquido salgado e transparente enquanto olhava para o cadáver da, até então, única pessoa que amara.

Mas, no momento, o mesmo silêncio invadiu a casa. E, como se puxado pela ausência de som, um sorriso infantil substituiu todos os sentimentos. A parteira, que já tinha limpo a criança e cortado o cordão umbilical, arregalou os olhos e perdeu o ar confiante. Esbaforida, em pânico, correu porta fora. O pai, ausente de todo o mundo, pela primeira vez percebeu o irracional. Agarrou na filha, embrulhou-a nos cobertores e sorriu. Despediu-se da esposa e soube ler no silêncio mortal que havia uma continuação, como um precipício que termina num gigante novelo de lã. Saiu para a rua com a filha carinhosamente depositada nos braços. Caminhou pela aldeia. Os poucos habitantes, cobardes e receosos, embora curiosos, depois dos gritos da velha, viram-no passar pela rua principal. Não demorou muito até que desaparecesse no horizonte. Nunca mais o viram. Dizem os mais velhos, que ainda hoje contam esta história, que ele aparece nalguns dias de chuva, com a filha ao colo. Quando ele aparece a chuva cai solta e quente, alaga os campos e faz nascer vida. Dizem que ele aparece sempre que alguém maltrata uma criança, e que a chuva são as lágrimas desviadas, para que a criança não sofra. Dizem, também, que quando ele aparece e alguém maltrata uma criança, a pessoa que ousa punir desta forma um inocente, fica condenada a ver, todos as noites, a imagem da mãe que nunca teve a filha nos braços, com lágrimas de sangue.