sábado, maio 07, 2005

Coração de salgueiro


Há alguns séculos atrás, algures no Japão, um monge dedicou um pouco de atenção a uma tempestade de neve. Uma pequena análise, desinteressada e casual, mudaria a vida deste homem para sempre (curiosamente, também a de muitas pessoas que o seguiriam). Durante a intempérie o monge observou que os carvalhos, com toda a sua robustez e imponência, eram arrancados pela raiz, brutalmente, por uma mão invisível e devastadora. Por outro lado, com toda a sua fragilidade e elegância, os salgueiros resistiam vergando-se ao sabor do vento. A dança dos salgueiros passou a ser encarada como um exemplo para as pessoas fracas fisicamente que eram subjugadas pela brutalidade dos lacaios feudais. Foi o início da força resistente dos débeis. A arte da suavidade nasceu dum momento, duma epifania exclusiva da natureza, que mostra a capacidade que o sonho (ainda que acordado) tem de provocar despertares.
Creio que, pelo pouco que os meus vinte e sete anos me mostraram, o nosso coração tem uma capacidade intrínseca de lutar contra as tempestades com que se depara. Muitas vezes basta flutuar ao sabor do sentir, outras, mais numerosas, tem de enfrentar a magia cinética dos elementos.
A fotografia aqui exposta foi tirada num momento que julgava triste e decisivo. Agora sei que tinha tudo aquilo de que precisava. O meu coração era um carvalho, estupidamente forte. A ausência arrancou-o pela raiz; a ausência provocará o seu (re)nascimento sob a forma de salgueiro.
A legitimidade de sofrer e de resistir também pode ser avaliada e medida. Acho que, se Deus existisse, estaria ocupado com um rol brutal de dúvidas de avaliação de casos. Deus teria de ser advogado (mas não juiz... parece-me demasiada responsabilidade para alguém tão apático; a decisão final teria de ser repartida por uma série de anjos, arcanjos e santos dispostos a ter olheiras por toda a eternidade).
Ontém conheci uma rapariga, excepcional pelas razões erradas. Quem me dera que ela tivesse a presunção de escalar o Everest ou de conduzir um McLaren F1, mas a categoria avançada em que se encontra deve-se ao facto de ser amputada de ambas as pernas, estar grávida e abandonada pelo progenitor da criança que irá parir daqui a alguns meses. Só espero que Deus, caso exista, se lembre de lhe plasmar no coração a agilidade típica dos salgueiros. No caso Dele não existir, espero estar eu e o resto da humanidade, sem subterfúgios religiosos nem esperanças vãs contidas num nevoeiro intelectual.