quinta-feira, junho 04, 2009

O lado negro de todas as coisas - parte II


Ele era um miúdo de onze anos e poucos meses. A escola ficava a alguns quilómetros de casa, demasiados. Todos os dias, tinha de apanhar um autocarro insuportável, cheio de gente que condizia bem com o veículo. Um dia, numa sexta-feira estival depois de terminar as aulas, o miúdo decidiu não apanhar o autocarro. Foi jogar à bola com os colegas, perto da casa de um deles. Ficava mais ou menos a meio do percurso que o autocarro tinha de cumprir todos os dias. Terminado o jogo, informal como devem ser todas as brincadeiras dos miúdos de onze anos, sozinho decidiu continuar a pé o caminho que lhe faltava para chegar a casa. Uma criança desta idade ainda está a aprender as regras básicas da vida na sociedade humana e nem todos os parâmetros fazem sentido, ainda que sejam aceites como verdades absolutas. Para chegar a casa o miúdo tinha de passar por uma linha de comboio, uma passagem apócrifa para a estrada que teria de seguir até casa. A linha estava ladeada por canas. Um trilho já tinha sido construído por entre as canas por pessoas que teimavam em atravessar naquele sítio, provavelmente a antecipar um trabalho camarário que a autarquia continuava a esquecer. Pouco antes de chegar à linha o miúdo ouviu uns passos atrás dele. Era um homem adulto com menos de trinta anos. Usava umas calças de ganga, era louro, com o cabelo ligeiramente mais comprido atrás do que à frente e tinha uma camisa azul às riscas horizontais e verticais numa imitação consentida dum padrão escocês. A tapar-lhe os pés estavam uns ténis brancos da marca Rothes, construídos a partir de couro artificial, o que teria reduzido consideravelmente o preço. Na mão o tipo trazia uma mala preta de plástico, como a dum qualquer executivo duma empresa de sucesso. O calçado estava claramente desajustado à mala. O miúdo sentiu-se mais confiante para atravessar a linha do comboio, uma vez que havia um adulto por perto, o que daria outro valor àquela passagem ilegal. Não apareceu nenhum comboio e, já longe das canas, na estrada que levaria o miúdo até casa, o adulto pediu-lhe uma informação. Uma história qualquer sobre um amigo que teria de ser encontrado e que morava numa qualquer rua ali próxima entrou nos ouvidos da nossa personagem principal. O miúdo, atento e prestável, decidiu ajudar aquele homem, visivelmente a precisar de orientação geográfica. Caminharam juntos durante uns minutos, o que foi suficiente para se desviarem da estrada e entrarem num prédio cuja escada era de utilização pública e dava acesso à rua de cima. A meio do prédio o homem parou, bateu a uma porta e aguardou pela resposta. Enquanto ambos esperavam por alguém que tardava em abrir a porta ou dar sinal de presença, o homem sossegou o miúdo garantindo-lhe que tinham chegado ao sítio certo. Do outro lado da porta ninguém respondeu. O homem, sem mostrar qualquer ar de surpresa ou incómodo por ninguém responder, sentou-se nos degraus mais próximos da porta e assumiu artificialmente uma postura de espera. Com um sorriso indefinido, sugeriu ao miúdo que se sentasse perto dele. Iriam esperar juntos por alguém que não estava. Sentados lado a lado, nuns quaisquer degraus frios dum mármore indizível, a conversa tomou o rumo que o homem planeara. Sem que o miúdo percebesse para quê ou porquê, o homem perguntou-lhe se costumava gostar de ficar “teso”. Uma criança de onze anos poderá não saber o significado destas palavras, tão agressivas como brinquedos de plástico partidos e cheios de pontas contundentes, mas a intenção salientou-se. O miúdo só respondeu, a medo e sem certezas, que não gostava de ter conversas destas com estranhos. Tentou levantar-se e continuar o caminho para casa, mas umas escanzeladas pernas dum miúdo de onze anos não conseguem competir com a força das mãos, como tenazes, dum adulto a puxarem-lhe o corpo inteiro para baixo, para os degraus. Mais uma tentativa de fuga, desta vez seguida dum grito ingénuo que antecedeu uma ameaça de morte perante os guinchos previstos, vindos de uma criança numa situação que não poderia controlar. Passaram segundos, minutos, como uma eternidade. O homem puxou a mala preta para juntos deles. Uns passos fizeram-se ouvir por trás de ambos, inesperados como chuva num deserto árido e igualmente milagrosos. Três ou quatro pessoas vestidas de preto e com umas caras aparentemente amigáveis desciam as escadas do prédio. O miúdo levantou-se, voltou-se, olhou para eles, fixou-os nos olhos durante uma fracção de segundo, o suficiente para agradecer a presença e a salvação, e fugiu pela escada abaixo. Correu durante todo o caminho, sem olhar para trás, até estar seguro em casa. Ofegante, fraco, a temer a humanidade, prometeu que nunca mais seria uma vítima nem permitiria, tanto quanto possível, que outra pessoa fosse vítima.