sexta-feira, maio 22, 2009

O lado negro de todas as coisas


Uma vez olhei para o mundo. Não é fácil vê-lo e viver nele é impensável, mesmo que insistamos todos os dias em mudanças, em manutenções e em fés vagas. Ainda que uma história seja feliz, acaba mal, invariavelmente.

Dois toxicodependentes, daqueles que caminham juntos enquanto praguejam numa linguagem alternativa para a maioria das sociedades, mesmo que ainda faça parte delas, adormeceram debaixo duma ponte qualquer depois de terem aplacado o desejo constante de não estar em lado nenhum. Meteram qualquer coisa para as veias e ficaram ali a apodrecer mais um bocado. Já não têm nome e as caras, de tão deformadas por substâncias indizíveis, já não lhes pertencem. Um deles não sobreviverá a esta noite. O que ainda alcançará mais um dia decrépito olha para o moribundo e promete-lhe que entregará os poucos pertences deste resto humano à família. Uma fotografia e um pente. No dia seguinte, o cadáver está esquecido e jaz numa poça de urina, restos fecais e vomitado, completamente despido, com as marcas expostas duma vida que dificilmente teria esse nome. O outro, cada vez mais irreconhecível, deambula numa feira enquanto procura agora vender uma fotografia, um pente e poucas peças de roupa nauseabundas. O fim adivinha-se, mas não é diferente do de qualquer pessoa.

O bebé, com passos patuscos, corre para a mãe, que o espera a dois metros de braços abertos. O pai fotografa a cena, inchado de tanto orgulho. Estão casados há cinco anos e tal e o filho tem quase dois. Nos próximos trinta anos serão aquilo que a maioria dos humanos classificaria como felizes. O bebé crescerá, tornar-se-á um homem, será educado, preparado para interagir com outros humanos e aprenderá a defender-se intelectualmente contra um mundo que espera que os mais fracos pereçam. A meio dum dos triunfos anunciados, o ex-bebé recebe um telefonema:

- Lamento, a situação da sua mãe piorou durante a noite e ela faleceu.

Nada prepara ninguém para uma situação de perda, mas a vida não é mais do que um estranho estado de alteração molecular a caminho da morte. Um grotesco jogo de azar perpetrado por genes que usam a vida para se divertirem à custa daqueles que mantêm o carbono à superfície do planeta. O fim adivinha-se, não é diferente do fim dum qualquer drogado que morre sem dignidade. No fim perde-se tudo, a não ser que, por uma ironia inconcebível, a memória desse alguém que morreu fique plasmada num livro, numa sinfonia, numa mistura controlada de cores ou numa capa de revista. Somos um produto dos outros.