terça-feira, agosto 15, 2006

Corte sagital da esquizofrenia...



Um pensamento constante, indistinto, é mais um sonho. Não reconheço as caras que vejo, nem sequer olho para elas como normalmente faria. Todos os dias a senhora da padaria é outra, o homem que se senta, depois do almoço, no degrau perto do arco medieval enquanto fuma um cigarro e (não) vê as pessoas que passam, é outro.
Já não me sinto inquieto por não me reconhecer, por viver no meu mundo que não é meu, onde até o meu espelho me atraiçoa.
Respondo aos bons dias que me são dirigidos com uma semi-indiferença esgotada no discreto aceno de uma das mãos.
O homem que me cobra pelas horas passadas a ouvir a minha patologia, o Dr. Alfredo Rosa, do qual só reconheço o nome, para mim é sempre alguém diferente, boceja com discrição, a disfarçar a própria anomalia que é o seu trabalho.
- Tem de tomar o “Socian” com regularidade, tem de superar esse cansaço emocional – afirma o erudito do cérebro com uma certeza ilógica.
Eu já sei que é um placebo, o alívio não chega. Vivo através das personagens dormentes de algum romance. Hibernam dentro de mim, e na latência do sonho são as únicas caras que reconheço. Até as gárgulas da Sé me são familiares. Figuras grotescas que acolho com uma ternura parental. São os meus guias nesta minha existência alienígena, longe de tudo o que conheço.
O presente deixou de o ser quando a vi. Alva, com roupas escuras, óculos pesados que transpareciam simplicidade ou o desejo de não ser dali. Só reparei nela quando, ao fim do segundo dia, os meus olhos não se mostraram ausentes. Pela primeira vez reconhecia uma cara, um rosto que me era alheio, longe de casa.
Comecei a esboçar sorrisos, podia dizer olá a alguém, embora, até aí, nunca o fizesse. Ela existia para mim naquela forma, fazia-me transbordar nas margens do intelectual. Eu obrigava-me a passar todos os dias junto ao Castelo, agora renovado com uma arquitectura absurda, onde ela estava ao fim da tarde.
Comentei isso com o técnico cerebral, o Dr. Rosa, que se mostrou interessado, afinal estava a progredir. Talvez ele, no fim de contas, fosse eficaz.
Ele propôs-se a ir comigo numa das minhas deambulações diárias pela cidade. Aconselhou-me a falar com ela, teria de haver uma razão para só ela se inserir na lógica da minha existência doentia.
Subíamos a rua, eu e o meu conselheiro outra vez desconhecido. Comecei a ver as mãos dela, com as unhas pintadas de preto, repousadas nas pernas cruzadas discretamente por baixo da saia comprida. O pulso acelerou, o meu organismo contraiu-se por abandonar o resto do mundo e me entregar ao reconhecimento de mim. Chegámos perto, mantive-me sempre silencioso. Olhei com alguma suavidade para os olhos claros da única pessoa que me fazia lembrar que algum oxigénio corria em mim.
Num momento hesitante disse-lhe olá e perguntei-lhe se sabia a que horas abria a galeria de exposições do Castelo. Ela só me disse que ainda estava aberta, fecharia daí a quinze minutos. Eu agradeci-lhe e continuei.
O Dr. Rosa, o vendedor de unguentos mentais, não muito admirado, destruiu o meu mundo. Perguntou-me com quem tinha eu falado lá atrás.
Desde esse dia nunca mais parou de chover.